segunda-feira, 30 de março de 2009

Príncipe do Acre

Estou no Acre. O Acre é uma porção de terra boliviana que foi "anexada" pelo Brasil. Adoro essa palavra: "anexada". O que ela significa? Faz a gente pensar um pouco sobre o papel que nosso país exerce na América Latina (imperialista?). Aparentemente, o Brasil invadiu estas terras na corrida pela borracha e acabou lutando, dominando e se instalando por aqui, neste lugar que tantas vezes esquecemos que existe. Ouvi dizer que o governo enviou índios e nordestinos para cá compulsoriamente com fins de exploração e dominação. O povo daqui gosta de dizer que é o único Estado do país que lutou para ser brasileiro. Isso de fato criou uma forte imagem nacionalista no imaginário popular local.

João Donato nasceu aqui. Ele foi um ícone da Bossa Nova, apesar de suas composições extrapolarem a Bossa Nova, mas como de costume no nosso país, seu talento enquanto compositor é subestimado. Quem sabe um dia receba o devido reconhecimento. Ou não; neste caso ele fica como prêmio para nós, catadores de pérolas. E que pérolas! Vale à pena citar o disco "Me and my heart/Eu e meu coração" de Rosa Passos, lançado em 2001 nos EUA e 2003 no Brasil, que capta a essência do que significa a música de João Donato, ao menos para mim. A gravação se resume ao violão e voz de Rosa, e ao baixo paradisíaco e uma bem colocada percussão de boca de Paulo Paulelli. O contrabaixo de Paulelli é luxo só, e a afinidade estética com a emanação musical feminina de Rosa Passos é perfeita. O resultado do som é quente e doce. Um som de madeira e vento. Algo de floresta, que nos traz de volta ao Acre e João Donato, homenageado neste disco com apenas duas canções. Mas nem precisava de mais. Uma delas se chama "Surpresa", e é de co-autoria com Caetano Veloso. A letra é assim:

Surpresa
João Donato/Caetano Veloso

Que surpresa
Beleza

Luz acesa
Certeza

Que saudade
Verdade

Já chegou
Então
Vem cá.

A música de João Donato tem essa coisa muito especial de ser simples, de ter poucos acordes, harmonias básicas e melodias que ressoam na nossa cabeça por muito tempo depois da música ser ouvida. A letra ficou bem especial também, perfeita para a melodia que adorna. Essas qualidades encontramos também em Tom Jobim e em Cartola, para citar apenas dois. Falando nisso, ontem fui ao cinema assistir ao "Palavra Encantada", um documentário de Helena Solberg sobre a canção brasileira, com depoimentos de artistas diversos: Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Chico Buarque, Maria Bethânia, Tom Zé, Lenine, Lirinha e outros. Fala-se sobre a relação da música e da poesia; o que diferencia uma letra de música de um poema. Algumas questões polêmicas são colocadas em xeque, como a suposta superioridade da poesia às letras de canções, posição em geral defendida pela classe literária. Letra de música não é poesia. No vídeo, Chico Buarque diz que não é mesmo, e nem tem a pretensão de ser. A mensagem do documentário quer desmentir que a poesia escrita seja superior à "poesia" cantada. A música dá às palavras uma nova dimensão, um novo significado, uma outra cor, de forma que sem a melodia, sem serem cantados, os versos não fazem sentido, ou fazem menos sentido. Tente ler uma letra de música como se fosse um poema. De forma geral isto não funciona. E nem precisa funcionar, pois este não é o objetivo; a música não foi feita para ser lida, mas cantada. O documentário até faz um paralelo bonito da canção brasileira com as trovas da Idade Média. Pode-se dizer que se trata de um caso de sinergismo, onde um mais um não são dois, mas três. A melodia sozinha tem seu valor, e os versos sozinhos têm seu valor, mas os versos cantados valem mais do que a soma de seus valores separados. Isto confere uma dimensão mística à canção, que é justamente a coisa que mais me intriga na música brasileira. Isto foi levado até as últimas consequências pelos compositores brasileiros do século XX.

Para encerrar, deixo mais uma de João Donato, só por diversão:

Nasci para Bailar
João Donato/Paulo André Barata

Atravessei sete montanhas pra chegar no mar
Porque nasci, nasci para bailar
Abri veredas e cancelas pra poder passar
Por que nasci, nasci para bailar
Danço bolero, danço samba, danço cha cha cha
Por que nasci, nasci para bailar
Rimo Raimundo com a virada desse mundo
Vou no raso, vou no fundo
Mas um dia eu chego lá
Rodo bandeira, dou pernada, dou rasteira
Toco surdo em frigideira, atabaque e ganzá
Por que nasci, nasci para bailar
Por que nasci, nasci para bailar...

2 comentários:

belola disse...

Lendo teu texto deu um monte de vontades. De viajar pro Acre. Mais ainda, de ser acreano só pra experimentar o sentimento de ter lutado pra ser brasileiro.
De conhecer toda a obra do "principe do Acre" e me deleitar com a sua divina simplicidade. De assistir um show ao vivo com a Rosa Passos cantando Eu e meu Coração, acompanhada pelo Paulinho Paulelli, pra experimentar o que é um som quente e doce, de madeira e vento!
Muita , mas muita vontade de ter nascido pra bailar... Quer um motivo mais gostoso para viver??
E é isso, Josezinho, isso que tuas palavras provocam em mim.. Um monte de desejos...Obrigada !

Julia Bax disse...

O Acre existe, e ainda por cima é muito legal!! Rio Branco é uma cidade pai d'égua!