sábado, 6 de dezembro de 2008

Final de semana passado fui para Belém para o aniversário de oitenta anos da Vovó Fernanda. A família praticamente inteira compareceu, contando, inclusive, com a ilustre presença de tio Guilherme e sua pequena cria portuguesa, Naiana. A festa foi muito bonita, e teve algumas performances musicais e teatrais dedicadas à vovó. Projetaram em um telão uma apresentação com fotos e uma narrativa da trajetória da portuguesa que veio ainda jovem para o Brasil, e se casou com o português Fernando Nascimento via procuração: ela em terras amazônicas e ele em terras lusitanas. Eu tinha a intenção de cantar uma canção do Chico Buarque na festa, que julguei apropriada por fazer uma ponte entre Portugal e Brasil, chamada "Fado Tropical". Acabei não cantando porque me emocionei com a vovó cantando um fado a cappella, de um jeito que só ela sabe fazer. Não sei se porque é minha avó, mas ela cantando fados é uma das coisas mais bonitas que já ouvi. Segue aqui a letra da canção do Chico, em homenagem a Dona Fernanda:

Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal


"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo...(além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."

Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal


"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa..."

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial

Na gravação original, os trechos entre aspas são declamados como poesia, ao som do acompanhamento de uma guitarra portuguesa.
Como pode alguém fazer uma música ao mesmo tempo inteligente, hilária e que desvende duas culturas simultaneamente? Chico Buarque, sem formação musical, guiado basicamente pelo instinto, é a síntese da cultura brasileira. Além de ser um gentleman, é claro.
Faço aqui um parênteses: Esta canção foi feita para uma peça teatral escrita por Ruy Guerra e Chico Buarque, chamada “Calabar”, ou “O elogio da traição”. A peça conta um pouco da história do domínio holandês de Pernambuco no Brasil colonial, a partir da traição de Calabar à Coroa Portuguesa. O interessante é que a peça mostra traições em diversas situações, mas nunca toma partido de nenhum dos lados. Sem entrar em maiores detalhes, quero dizer que a trilha sonora da peça é fantástica. Pérolas como “Tatuagem”, “Bárbara”, “Tira as mãos de mim” além, é claro, do “Fado Tropical”, estão lá.
Muito se pode falar sobre Belém: a culinária indígena, a pororoca cultural, as contradições sociais, o desrespeito à natureza, o calor humano. Belém, ao meu ver, é uma cidade inquieta.
Dentro da floresta tropical e dos grandes braços do rio Amazonas repousa uma calma sabedoria. De alguma forma, a magnitude dessas fortalezas inspira nos homens o respeito de uma entidade superior, e não é de se espantar que gere tantas lendas no imaginário popular: o boto, Iara, o muiraquitã. São Paulo, como bom exemplo de metrópole, carece desse tipo de referência. Em todo grande centro urbano, reside o sentimento equivocado de que o homem logrou domesticar a natureza. O norte do país é uma nação que ainda presta reverência à natureza.
A floresta amazônica é uma centelha de inteligência.

4 comentários:

anyway disse...

Primeiro a comentar! Primeiro a comentar!

belola disse...

josezinhno.... Um dia me levaram em um pai de santo que falando de minha vida comentou que: " você pariu um filho que está mais pros ceus do que pra terra ...Proteja-o !" Você era muito pequetito ainda, e eu não assimilei o comentário. Mas cada dia que passa entendo mais o que ele quis dizer...

belola disse...

fio , vc leu meu comentário?

Unknown disse...

Zé querido, minha mana Belola tinha razão quando que lhe chamava de "minha florzinha de maracujá".
Lembro que o Zeca, seu pai, dizia: pô, Belola, não dá para chamar minha flor de cactu"? Mas aí está, a flor de maracujá cheirosa e gostosa, ou seja, uma criatura abençoada pelos deuses, cuja beleza vem de dentro e se junta à beleza que a junção de duas pessoas maravilhosas (Belola e Zeca) fizeram. Seu depoimento sobre sua vó e Belém é sublime. Sua vó dorme, mas já já vai ler seu comentário. Bjs